Alice no país dos versos encantados

Alice no país dos versos encantados

Alice acha-se uma poeta “de várias inquietações” que gosta da liberdade de pensar e de sentir.

Descobriu a poesia muito menina. A inocência, o deslumbramento e o desconcerto com o mundo em seu redor foram conservados até hoje, dando-lhe uma forma de sentir, de ouvir e, sobretudo, de olhar as coisas e as pessoas com um lado mágico que verte na sua escrita.

Conta ela que começou a escrever um verso “num daqueles papéis meio cor de rosa dos blocos de nota que nos oferecem”, depois, um conto de terror, depois…Mais tarde, começou a escrever compulsivamente poesia, mas isso não lhe chegou e foi para um palco declamá-los como um manifesto da sua posição neste mundo. Para essa leitura em voz alta teve um incentivo inicial de luxo, o do escritor e seu professor Gonçalo M. Tavares. Descobriu então a Slam Poetry – uma competição em que poetas estão frente a frente num palco e leem ou recitam poemas da sua autoria com uma interpretação muito pessoal. Alice gosta particularmente da força que se dá às palavras no “Slam Poetry”, entoadas no tom certo. “Quando se sentam para te ouvir, as pessoas querem ser mexidas por dentro”, diz ela.

A formação em Psicomotricidade e a especialização em cegos-surdos, lidando sobretudo com jovens adultos trouxe mais-valias à poesia de Alice: deu-lhe “um olhar único de ver e escrever o mundo”. Leu poemas de muitos autores – “Os da Florbela Espanca, eu sei de cor porque eu li o seu ‘Livro de Mágoas’ muitas vezes. Muitas!”- e sabe de cor os seus poemas quase todos. Antes, nas suas leituras em voz alta, interpretava os poemas a partir do que tinha escrito, mas agora, arrisca para que eles saiam diretamente do coração para a boca, sem passar pela mão e pelo papel.

Declama poesia em programas da TV e, em janeiro último, tornou-se um fenómeno nas redes sociais ao dizer de cor o seu poema “Poeta” durante o programa “Bem-Vindos” da RTP África. Alice inspirou-se no momento desconcertante em que uma criança descobre que os lápis que vai usar no seu desenho têm uma cor chamada “cor de pele”. Então, a poeta pergunta ao mundo: “o que raio é um lápis cor de pele”? São palavras da Alice, desta poeta singular, escritas e ditas de forma contundente que podes apreciar aqui:

 

Alice ficou orgulhosa com o impacto destes seus versos, por terem” suscitado reflexão e trazido uma das minhas inquietações ao de cima”, comenta ela, mas não quer ficar por aqui. Afirma-se uma poeta com “outras camadas além da óbvia”. Nos seus poemas ora se vira para fora, concentrando-se nos problemas sociais com que se depara nas ruas ora se vira para o seu EU, falando, por exemplo, de amores de desamores. “Não é preciso ser-se poeta para se escrever um bom poema de amor: é só preciso existires e amares alguém”.

Ora lê o seu 1º poema de amor:

Sempre pensei que não tinha sorte.
E de cada vez que fazia um corte
via o sangue vermelho como uma rosa
numa poesia que me soava a prosa.
Depois, apareceste e tudo mudou. Até pensei que o azar terminou
fazias-me sentir bem
e passei a ser alguém.
Apaixonada e também iludida
eras o centro da minha vida.
Estavas comigo em todos os momentos,
só que na maioria em pensamentos
gostava de pensar em ti como algo que um dia ia ter
quis fazer parte de mim, aconteça o que acontecer.
Mas de repente a vela do nosso amor se apagou
e um novo dia recomeçou.
Um dia que parecia não ter fim.
As sombras tomaram conta de todo o meu ser
e foi aí que eu vi que me estava a perder.

Gostaste da Alice? Ela quer continuar a fazer poesia e a exibir as suas palavras certeiras e mágicas num palco nem que seja só o da própria vida.

Um retrato da Alice

Nome completo: Alice Neto de Sousa
Tem: 28 anos
Nasceu: em Lisboa, Portugal
Tem raízes: em Angola
Vive: num bairro histórico de Lisboa
Formou-se: em Psicomotricidade
Trabalha: numa instituição com cegos-surdos
Arte: é poeta, escreve e declama poesia

 

Texto: Maria José Pimentel