Notícia e conto: a indiferença dos outros

A 19 de janeiro de 2022 aconteceu uma coisa chocante, que todos devemos conhecer para que não se repita.

Um conhecido fotógrafo francês saiu de casa em Paris nessa noite e, no caminho para uma praça movimentada no centro da cidade, sentiu-se mal e caiu desmaiado na rua. Ali ficou nove horas e ninguém reparou ou parou para o ajudar. René Robert tinha 84 anos e acabou por não resistir ao frio, morrendo de hipotermia. Foi um sem-abrigo quem alertou os bombeiros mas, quando finalmente o assistiram, já nada mais havia a fazer.

 

Foto: “Place de la République”, no centro de Paris. Crédito: Mohammed Badra/EPA

 

Esta indiferença das pessoas que andam sempre com pressa nas ruas, “cegas” para o que se passa à sua volta, embrulhadas no seu mundo e nas suas preocupações rotineiras, sem tempo para “dar a mão” ou sem vontade de ajudar é uma marca da nossa sociedade, sobretudo das cidades. Se este fotógrafo não tivesse amigos conhecidos, seria mais uma morte “de causa desconhecida” e incógnita na rua.

Um amigo seu deixou-nos este recado: “Ao menos que se aprenda alguma coisa com esta morte. Quando uma pessoa está deitada no chão, mesmo que estejamos com pressa, vamos ajudá-la. Vamos parar”. Lê mais aqui.

Este trágico incidente faz lembrar um conto da escritora Sophia de Mello Breyner intitulado “O homem”, incluído em Contos Exemplares, publicado em 1962. Também lá há uma narradora que passa numa rua movimentada de uma qualquer cidade e que se cruza com um homem desamparado, que vai desabar a todo o momento e cujo silêncio angustiado choca com a indiferença e pressa dos que passam por ele.

Aqui fica um excerto central para te aguçar a curiosidade. Procura o conto e tenta ler a história integral. Talvez assim te sintas com mais vontade de marcar a diferença, olhar sempre para o lado e estar disposto a ajudar quem precisa.

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A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente passavam sem o ver.

Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos.

O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão.

Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o via caminhando lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria.

 

 

Texto: Maria José Pimentel