Bolo-rei, essa tradicional iguaria de Natal

É presença assídua à mesa portuguesa nesta época festiva e familiar. Como surgiu este doce? E o que é que os três Reis Magos têm a ver com esta história?

De um jogo pagão à doçaria da consoada

É um bolo que passou por várias fases. A sua origem, diz quem investigou o assunto, remonta aos festejos dos romanos que, em dezembro, celebravam o renascimento de um novo ano. Nesses jantares, era eleito o rei da festa com tortas redondas, em que apenas uma tinha uma fava seca, símbolo de fecundidade. Quem encontrasse a fava, era o rei da fava, ou seja, o rei da festa. Nesse tempo, a receita desse doce era outra. Entretanto, ainda durante a Idade Média, a Igreja Católica aproveitou o jogo pagão do mês de dezembro para a quadra festiva de Natal com esse bolo com fava.

 

Os banquetes na corte de Luís XIV

Reza a história que o formato redondo do bolo com um buraco no meio surgiu em França, na corte de Luís XIV, durante as festas de Ano Novo e Dia de Reis. O bolo tornou-se tradição com fava e brinde de porcelana, habitualmente uma figura do presépio em ponto pequeno. Quem os encontrasse, era o rei ou a rainha da festa, podia usar uma coroa naquele momento, pedir um desejo, e pagar o próximo bolo.
O bolo-rei foi proibido durante a Revolução Francesa, em 1789, só que os pasteleiros de então, espertos na arte e porque o negócio não podia parar, mudaram-lhe o nome e nada aconteceu. O problema era o rei no batismo. Seja como for, era doce que não passava despercebido, não apenas à mesa, servindo de inspiração a escritores e pintores da época.

 

Redondo como uma coroa

O bolo-rei entrou no nosso país, e instalou-se confortavelmente na doçaria, a partir de uma receita vinda de França, no século XIX. Um bolo em forma de coroa, à rei, pois claro, buraco no centro, feito de massa leveda, com ovos, com passas, frutos secos e frutas cristalizadas. Tudo indica que a primeira casa portuguesa que vendeu este bolo foi a Confeitaria Nacional, em Lisboa, pelos anos de 1870, confecionado por um pasteleiro francês com uma receita trazida de Paris. A fama espalhou-se ali à volta e várias confeitarias lisboetas começaram a fabricar o bolo-rei para a mesa de Natal.

No Porto, por volta de 1890, a Confeitaria Cascais terá sido a primeira a fazer a receita, também trazida da capital francesa, pelo seu dono Francisco Cascais (daí o nome da casa). A 5 de outubro, com a proclamação da República portuguesa, a palavra rei no bolo criou alguns problemas. Os pasteleiros da altura mudaram-lhe o nome, para bolo nacional, bolo de Natal, bolo do Ano Novo, mantiveram a receita e continuaram a cozinhá-lo e a vendê-lo como se nada tivesse acontecido. Negócio era negócio, política era política.

 

A fava, o brinde, a lei

A fava seca no interior do bolo-rei durou anos e anos, tal como objetos que podiam dar sorte. No nosso país, em 1999, a lei veio alterar ligeiramente esse hábito ao proibir a venda de géneros alimentícios com brindes misturados, com uma exceção que fazia toda a diferença: a exceção ao bolo-rei por razões de tradição cultural. Percebia-se essa exceção à regra. No entanto, anos depois, devido à imposição em mercados estrangeiros e à livre circulação, uma vez que os produtos andavam de país para país, a lei veio pôr um ponto final na fava seca e nos brindes metidos no miolo do bolo-rei que apresentem riscos para a saúde dos consumidores, como asfixia ou obstrução gástrica.

 

A história dos Reis Magos

No Natal, celebra-se o nascimento do Menino Jesus e os três Reis Magos entram nessa história. Gaspar, Baltazar e Belchior andaram muito para oferecerem presentes ao bebé que tinha acabado de nascer. Ouro, mirra e incenso. Há associações que ligam o bolo-rei a essas ofertas. Ou seja, a côdea amarelada simboliza o ouro. As frutas cristalizadas e secas simbolizam a mirra. E o aroma do bolo o incenso.

 

Novas versões do doce de Natal

A receita do bolo-rei é extensa, dos ingredientes à própria confeção, para quem não está habituado, parece bastante complexa. Isso é uma coisa. Outra é o sabor. Há quem goste tal como é, há quem embirre com as frutas cristalizadas, há quem não aprecie os frutos secos deste bolo bastante rico na sua composição.

Com o paladar não se brinca e não tardaram a aparecer receitas alternativas. O formato mantém-se, os ingredientes são outros. Bolo-rei de chocolate, bolo-rei de avelãs, também os há com framboesas, mirtilos, pistácio e romã. No Alentejo, há quem o faça com creme de batata-doce de Grândola e com cereja do Fundão. Há versões que levam cremes de cacau e amêndoa, maçã e canela. E há ainda o bolo-rainha que se distingue do rei por ter frutos secos, tostados e crocantes, sem frutas cristalizadas. Sempre redondo, sempre com buraco ao centro, a gosto dos clientes. Paladares não se discutem, pois então.

Texto: Sara Dias Oliveira
Foto: Maria João Gala