Mexer o corpo torna-te mais ágil e autónomo. Puxar pela cabeça em jogos e aventuras ao ar livre ajuda-te a exercitar o raciocínio. Os especialistas recomendam. Por muitos motivos.
O panorama está identificado e não é animador. Sedentarismo infantil, inatividade física, horas em frente aos ecrãs e outros aparelhos digitais (mexendo apenas olhinhos e dedinhos), agendas preenchidas com atividades formatadas, isolamento social cada vez mais evidente e preocupante. Esta forma estática de passar os dias tem consequências. Falta tempo e falta espaço? É uma questão de organização. Brincar na rua tem muitas vantagens – entenda-se por rua, espaços a céu aberto, parques verdes, sítios para correr, jogar, dar asas à imaginação (não estradas cheias de carros).
Pensamento em ação
Carlos Neto, um dos maiores especialistas do Mundo na área da brincadeira e do jogo, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, avisa que brincar é um assunto sério. “Brincar não é um passatempo ou um entretenimento. É um modo de pôr em ação o pensamento”, escreve no seu livro “Libertem as crianças”.
Brincar na rua é brincar de forma livre, é ser ativo, é pesquisar e é explorar, é correr riscos, é ganhar independência a nível de mobilidade e destreza física, é encontrar desafios motores, cognitivos, emocionais e sociais em variados contextos. É ser mais ágil no corpo e na cabeça. É conquistar autonomia. É aprender. É colocar todos os membros em ação, mãos e pés, olhos e ouvidos, cérebro e emoções, sentimentos e linguagem.
Carlos Neto deixa vários recados aos adultos, aos pais. “Conhecer e explorar os espaços exteriores através da promoção de autonomia implica sair de casa e experimentar uma grande variedade de ambientes físicos. Não atrapalhem as crianças. Deixem-nas brincar livremente.”
Tanto para fazer, tanto para explorar
Carlos Neto dá vários exemplos. Subir às árvores, escorregar, rebolar no chão e na areia, jogar à bola, andar de patins, de skate, de bicicleta, chapinhar na água. Correr, saltar, dançar, o toca e foge, as escondidinhas, observar as maravilhas da natureza, mexer na terra. Há tanto para fazer fora de casa. Uma criança saudável tem os joelhos esfolados, segundo Carlos Neto. A roupa suja.
Estamos a falar de segurança e autonomia, sobrevivência e confronto com adversidades, superação e capacidade adaptativa. Brincar lá fora tem tudo isto.
Fantasia, imaginação, faz de conta
Rute Agulhas, psicóloga e terapeuta familiar, viu crianças a brincar na rua em Cabo Verde, onde esteve recentemente. “Umas jogavam ao que chamamos de ‘lencinho’ e outras faziam de conta que as poças de lama eram mares navegados por navios, feitos de pedrinhas”, conta. Um cenário que não esquece. São brincadeiras que, refere, “facilitam a socialização e a integração no grupo de pares, bem como a fantasia, a imaginação e o faz de conta”.
Todavia, brincar na rua é cada vez mais raro, a resistência a sair de casa é cada vez mais forte, os ecrãs dominam os tempos livres. E não pode ser. “Nos dias de hoje, os maiores riscos e perigos andam no bolso das crianças e, muitas vezes, dormem com elas na cama”, observa Rute Agulhas. “É desejável que exista um equilíbrio entre as atividades online o offline, sendo certo que brincar na rua e em contacto com a natureza e com outras crianças permite desenvolver e estimular diversas competências”, refere. Competências de comunicação, resolução de problemas, cooperação ou competição. Por isso, há que correr, saltar, jogar à bola, andar de baloiço. Brincar ao ar livre.
70%
É a percentagem de crianças portuguesas que passam menos tempo ao ar livre do que os 60 a 120 minutos recomendados para os presos, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
10,8%
É a percentagem de crianças que frequentam creches e jardins de infância que brincam nos espaços exteriores (recreios) durante os três meses de inverno. É uma percentagem bastante baixa. Em média, os bebés com menos de um ano têm duas saídas ao exterior no inverno.
Brincar é estimular o sentido de humor e de justiça, a positividade do cérebro e do pensamento, a capacidade de resolver problemas e de aprender a lidar com o incerto e a imprevisibilidade e, principalmente, é partilhar o sentido da vida em empatia com os outros.
Texto: Sara Dias Oliveira
Fotos: freepik.com